Porque não sou indiferente, reproduzo artigo de opinião de José Pacheco Pereira,
publicado no Jornal “Publico” de 17 de novembro de 2018
Link para página do original: https://www.publico.pt/2018/11/17/sociedade/opiniao/amam-touros-torturam-matam-1851179
OS QUE “AMAM” MUITO OS TOUROS E OS TORTURAM E MATAM
Acabar com as touradas, com
a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom
sentido.
A ideia
de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de
expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por
muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo
frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no
passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e
poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível,
feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar,
punir a violência.
É o
mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é
o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica,
é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o
mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo
em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc., etc. Sim, é verdade
que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o
mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.
Os
animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz
parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todasas formas de violência olhar para os animais com um sentimento de
especial proximidade que está para além da domesticidade. Os movimentos a favor
dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem
parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o
modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a
crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada
que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e
crianças.
Não me
estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos
animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver
com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de
industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser
menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel
no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o
seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.
Tem que
ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a
exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e
depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas
desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue,
da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos
os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas
as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual
entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo.
Não é um
combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos
não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um
combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os
chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o
espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie.
O
argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre
é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas
inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à
excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a
“tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao
“cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater.
Os
argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos
da NationalRifle Association nos EUA, que também se identifica como uma
“associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar
uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre
culpa de outra coisa que não sejam as armas.
As
histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic),
de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos
do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse
fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os
mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco
envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização. O mundo em que
vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não
há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto
mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para
satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos
na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar
à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país
podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.
Artigo de opinião de José Pacheco Pereira, publicado no Jornal “Publico” de 17 de novembro de 2018
Link para página do original: https://www.publico.pt/2018/11/17/sociedade/opiniao/amam-touros-torturam-matam-1851179